Tirésias entre Apolo e Dioniso
Nesse texto, o autor Valton Miranda, faz uma viagem entre os personagens da mitologia e as instâncias do psiquismo humano, apontando as oscilações humanas tão bem representadas através desses mitos. Uma leitura estimulante ao pensamento. Uma viagem pela mente humana desde os mitos citados, com um guia conhecedor profundo de ambos.
O mito conforme Green é um objeto transicional coletivo. Outros autores como Adorno
e Horkheimer colocam o mito como passagem no percurso do saber e, portanto, da ciência. A
psicanálise, além disso, dirá que a mitologia situa o desenvolvimento humano no confronto entre
Narciso e Édipo. O cego Tirésias, sacerdote de Apolo, é o intermediário entre o saber divino e o
conhecimento humano. Tirésias fala a verdade através de enigmas e parábolas, pois possui a terrível
memória do futuro. O entrecruzamento mitológico situa, portanto, o sacerdote de Apolo como figura
nuclear, entre a beleza do saber apolíneo e a fragmentação e dispersão que caracterizam Dioniso.
Desse modo, Apolo e Dioniso exprimem, de um lado, o pressuposto para o conhecimento
humano e a arte, enquanto, do outro é a fragmentação e o caos. O único tradutor dentro do próprio
sistema mítico é necessariamente cego na senso-percepção.
A cegueira deveu-se à curiosidade tiresiana de espiar o coito de serpentes sagradas no monte
Citerão, matando a fêmea e vivendo sete anos como mulher, posteriormente voltando ao mesmo
local, matando o macho e retornando à condição de homem. Portanto, Tirésias além de tradutor
mítico é a própria expressão vivida do inconsciente. O inconsciente masculino e feminino, hetero e
homossexual, diabólico e simbólico, organizado e belo no ego maduro, desorganizado e demoníaco
no id, destruidor e bloqueador da verdade e produtor da desordem e da confusão, será retraduzido
pelo gênio de Freud como complexo, utilizando o mito de Édipo.
Ampliando essa compreensão com Klein e Bion, pode-se dizer que Apolo situa-se do lado da
posição depressiva, enquanto Dioniso exprime a linguagem psicótica, a desesperança e o medo, no
vértice esquizoparanoide.
Freud talvez dissesse que o primeiro psicanalista não foi ele, mas Tirésias, pois recomendou
aos praticantes da psicanálise que se cegassem para alcançar o inconsciente.
A mitologia tanto apresenta aquilo que será descarregado no corpo e no ato em Dioniso ou na
loucura de Orestes, quanto o que deve sofrer a iluminação do sol enquanto metáfora da grandeza
apolínea. As transformações que deverão ocorrer ao longo do processo analítico podem ser lidas,
caso tomemos o sistema mitológico como um contínuo de complexos que se manifestam em crenças
coletivas e individuais. O mítico que está contido nas crenças e religiões é passagem necessária para
que as transformações ocorram na permanente modificação que os elementos mentais em contato
com o corpo e a experiência do pensamento verbal, constituem como realidade da linguagem e da
cultura.
A fênix, a ave mitológica da transformação que renasce das próprias cinzas a cada quinhentos
anos, está no centro dessa dialeticidade Apolo-Dioniso, que para a psicanálise passa obrigatoriamente
por Orestes louco, castigado por Apolo, por ter morto a mãe Clitemnestra e o amante Egisto para
vingar o pai herói da guerra de Troia, Agamenon.
Se o mythos fala como pretendem Adorno e Horkheimer de um saber pré-científico, é possível
dizer também que fala de um saber inconsciente, que não se sabe enquanto não for submetido ao teste
da verdade. Essa será possivelmente a função do psicanalista na relação com Proteu, que exprime a
verdade através das suas múltiplas transformações. Como disse o saudoso Fabio Hermann “é preciso
agarrá-la a cada momento em que aparece durante o processo analítico num instante precioso”.
A loucura de Orestes é o resultado do ataque das vampirescas Erinias, enviadas por Apolo,
mas o filho assassino da mãe adúltera será redimido por um voto divino de Atena-Minerva. As
Erinias como as Górgonas estão do lado feminino da maldade (núcleo materno na dialética bondademaldade),
enquanto do lado masculino, a maldade de Dioniso será muito mais consequência da
irreflexão do que de verdadeira disposição para o mal.
O deus homossexual da fragmentação aponta para a perversão praticada em grupo com
mulheres e homens que o acompanham, executando atos transgressivos de natureza sexual e
violência corporal que são equivalentes à crueldade narrada pelo marquês de Sade.
A crueldade que resulta da incapacidade de pensar e aquela originária da pulsão de morte, não
poderia ser contida, senão à custa da renúncia e da castração, que o deus supremo do Olimpo impõe
aos homens, mas também aos outros deuses e deusas.
Tal renúncia protagonizada por Prometeu harmoniza o Olimpo com a humanidade no fogo
simbólico do sexo, da indústria e da fala. A civilização prometéica que nasce da dialeticidade entre
afronta e renúncia, não acontecerá senão depois que Epimeteu, irmão e duplo de Prometeu, for
iludido e castigado por Zeus, através da lindíssima Pandora. A boneca vivificada que traz para os
homens todos os presentes e todos os males, mas igualmente a esperança, exprime o mistério do
feminino no sistema mitológico.
O simbolismo da sexualidade e da agressividade, destrutividade e sadismo estão sempre
presentes na trilha do mito que acompanha a sociocultura e a vida política do homem. Construção e
destruição, guerra e paz, loucura e sanidade, mentira e verdade, mostram o devir histórico da
humanidade, tanto no interior do seu psiquismo particular, quanto na extensão à sua consciência
coletiva.
Antes que Odisseu possa superar as armadilhas da própria linguagem e da ilusão das sereias
na sua travessia heroica rumo ao seu reino em Ítaca, precisa ser resiliente para suportar enormes
sofrimentos e alcançar o encontro majestoso com sua amada Penélope. Antes disso, as mulheres de
Troia com Hecuba à frente já tinham sofrido pesados castigos e Cassandra que recusou o amor de
Apolo, foi castigada duplamente na contradição entre a perda da fala na gagueira insuperável e a
visão premonitória do futuro.
É possível perceber na narrativa mitológica que a triangulação edípica se encontra em vários
outros mitos e Freud poderia ter escolhido Orestes ao invés de Édipo, mas certamente, o trágico
sofocliano de Édipo-Rei se aproxima mais adequadamente da condição humana no incesto e
parricídio.
Ao amor incestuoso de Apolo por Cassandra, soma-se a punição pela transgressão edípica a
Orestes, que o destino lhe atribui inexoravelmente. O rompimento com as cadeias desse destino que
os deuses impõem, somente Tirésias e Freud saberão como superar, resolvendo o enigma da esfinge
do inconsciente.
O caminho da triangulação edípica é barrado por Narciso, sendo Tirésias novamente, aquele
que mostrará como o percurso do conhecimento é tortuoso, podendo ser mortífero. O sadismo na
curiosidade de saber joga o ser do homem no fascínio do espelho detrás do qual imagina alcançar
tudo e encontra o nada.
Mythos e logos correspondem a uma dialética que Apolo e Dioniso prefiguram na mitologia,
mas pode ser encontrada na relação histórica entre Moises e Aarão. O primeiro faz contato com o
saber divino e a lei que deve ser transmitida aos homens através da fala do segundo. Os irmãos são
pares complementares, reunindo o ato e o verbo.