A civilização da imagem e os vícios eletrônicos
Por Rosane Müller Costa**
Os “vícios eletrônicos” como práticas em sites de relacionamento, jogos on line, sexo virtual ou qualquer uso excessivo em que predomine o caráter de ação impulsiva e irrefreada são examinados como uma nova forma de adicção parte de um contexto maior nominado de civilização da imagem. As transformações sócio-culturais daí provenientes e as repercussões de estarmos nos expondo a realidades cada vez mais virtuais serão consideradas à luz do pensamento de A. Green sobre a estrutura enquadrante, D. Winnicott e o objeto transicional e Freud com a noção de narcisismo.
**Membro Efetivo do GEPFOR e da SPR e professora da Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza.
**Trabalho apresentado na III Jornada do GEPFOR – Limites do Prazer x Prazer sem Limites e no XXIII Congresso Brasileiro de Psicanálise – Limites: Prazer e Realidade
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O tema “Vícios Eletrônicos” insere-se em um quadro de referência maior concernente à difusão da imagem no mundo moderno. É possível que apenas tenhamos tomado consciência desse fenômeno, e do quanto tem transformado nossas vidas, em um tempo relativamente reduzido. Em verdade, pouco sabemos sobre os efeitos do extraordinário poder dos meios de comunicação conjugados ao poder da imagem e sobre as repercussões de estarmos nos expondo a realidades cada vez mais virtuais.
A internet, a TV transmitindo noticias, praticamente, em tempo real, o cinema, etc., deram ensejo a um novo modo de comunicação cujo emprego maciço é a grande novidade do nosso século. Um mundo de oportunidades tem se apresentado e ainda estamos conhecendo suas possibilidades. Mudanças no trabalho, no lazer, na sensação de tempo e distância, na conduta e nos valores têm sido observadas nem sempre com otimismo . A guerra, o crime, a solidariedade jamais serão os mesmos, de maneira que uma verdadeira revolução está em curso forçando nossa rápida adaptação aos novos tempos.
O formidável progresso tecnológico alcançado tem sido usado para maximizar a comunicação entre as pessoas, nem tanto criando objetos que facilitam a vida cotidiana como preconizava o desenho animado dos anos 60, Os Jetsons. O fato é que, até pouco tempo atrás, não tínhamos idéia do poder contido na comunicação, não suspeitávamos de nossa sede de contato, nossa curiosidade pelo outro, nosso desejo de nos apresentarmos, de sermos vistos.
Nesse contexto tem se apresentado um novo tipo de hábito como uma verdadeira adicção: pessoas de todas as idades passam muitas horas diante de telas em jogos on line, sites de relacionamento, sexo virtual, etc em prejuízo de atividades que devem se passar sem a mediação de aparelhos eletrônicos. Este trabalho é um estudo preliminar sobre as possíveis origens e repercussões da exposição cada vez mais freqüente e prolongada aos meios visuais de comunicação e a realidades virtuais. Abordaremos alguns aspectos distintivos da era moderna e os articularemos ao pensamento de Green e Winnicott .
Sobre o poder da imagem
Não se trata de tentar responder se a difusão das imagens por intermédio dos meios de comunicação, televisão, cinema, internet, mas também pela fotografia, histórias em quadrinhos, revistas entre outros meios é um fenômeno bom ou mau; este é um aspecto do mundo moderno, portanto, condenar a imagem é condenar a modernidade . Nem se trata de dizer que por si só os artefatos eletrônicos têm o poder de desenvolver uma conduta aditiva. Em verdade temos adotado um modo de vida que remete ao excesso e isso tem sido constatado tanto por psicanalistas como por outros estudiosos do humano.
A imagem tem sido considerada como veículo de pulsões, afetos, forças irracionais e instintivas, modo de pensar dominado pelo processo primário, pensamento onírico, mas, sobretudo, chama atenção como se dissemina de modo incontrolado – e isso suscita nossa atenção como fenômeno a ser compreendido. É assim que mais e mais estamos diante de telas em restaurantes, clínicas, elevadores, cômodos da casa, carros etc. Podemos até mesmo carregar nossa própria tela no bolso. E não é só: o hábito de manter o computador ou televisão ininterruptamente ligados tem crescido.
Por outro lado, não é certo dizer, como assinala Barthes (2005), que a linguagem articulada, a fala, é o instrumento do intelecto, da razão discursiva e abstrata, ao contrário da imagem – que estaria associada aos afetos, aos mitos, aos sentimentos de modo geral. Essa antítese permitiria concluir sobre uma regressão da humanidade para o irracional. Nem as palavras são o lugar do puro logos, pois desencadeiam processos afetivos, nem as imagens são desprovidas de sentido, pois podem ser signos ou linguagem.
É interessante notar em tudo isso, porém, um movimento que tende para a regressão. A relação com a tela do computador ou da televisão é idêntica ao que Barthes identifica nos amantes do cinema, onde a tensão causada pelo pensamento abstrato é suspensa na assimilação passiva da imagem, o que designa um modo de relação oral primitiva com o objeto. Diz Barthes:
“(…) o olhar do espectador (é) o olhar de alguém deitado num subterrâneo, alguém que emparedado no escuro, recebe a alimentação cinematográfica mais ou menos como um entrevado é alimentado passivamente com sonda ou pipeta.” (p.12).
O poder hipnótico da imagem é ainda assinalado pelo autor em outra passagem, onde revela: no cinema “… estou na caverna dos mitos, uma nesga de luz se agita lá longe acima de mim, e eu recebo a verdade das imagens como uma graça celeste”. (p.13) A imagem concreta atinge melhor o público do que a linguagem articulada, pois esta exige mais da capacidade de abstração e, portanto, mais trabalho mental; por outro lado, parte da atividade mental nunca poderá ser atingida pela mera visualização.
Tal poder de penetração nas mentes atribuído aos meios de comunicação, sobretudo à internet, conduz, segundo pensadores da modernidade, a aculturação a nível global. Isso significa que estão ocorrendo profundas transformações nos costumes e valores, paralelamente à desconstrução das tradições que dão sentido de identidade a grupos e sociedades, o que é altamente perturbador por não anteciparmos o resultado dessas mudanças ou, seria melhor dizer, “mutações”, pois parecem estar levando a rupturas profundas.
Outra consequência do intenso uso dos meios visuais de comunicação é o impedimento da elaboração de importantíssimas ansiedades de separação, o que atinge de modo mais nocivo as crianças, mas talvez também impeça processos de separação-individuação que devam se consolidar na adolescência, produzindo pessoas que apesar da idade se recusam a assumir postura mais independente e responsável perante a vida, conforme assinala Ahumada (1999). Além disso, segundo Baudrillard (1995), a reconstrução da realidade feita pelos meios visuais, ou seja, a realidade virtual tem levado à crise do pensar reflexivo. Esta seria a face mais surpreendente e assustadora da modernidade, pois em seu extremo acarreta déficits na capacidade de pensar, traço distintivo das personalidades aditivas, atuadoras e ainda presente em diversos tipos de patologias graves como psicopatias, personalidades borderlines, transtornos psicossomáticos etc. Em verdade, a capacidade de pensar só se estabelece sob um fundo de vazio, de ausência, de falta, que o nosso estilo de vida tem tentado eliminar.
Os avanços tecnológicos conduzem também à valorização de qualidades como rapidez, pragmatismo, eficiência, assertividade etc. Ainda que esses aspectos humanos possam ser desejáveis em muitas situações, eles vão na contramão da meditação, do poetizar e do criar, processos avessos à pressa e às coisas certeiras.
Nossa hipótese de maior compromisso, neste trabalho, vai no sentido de identificar, no estilo de vida que estamos criando, um movimento de grande magnitude que obstaculiza a efetivação do pensamento, mas também dos processos de constituição do psiquismo sendo, por isso, mais atingidos os mais jovens.
Uma nova ideologia
A perda da referência a códigos de conduta, que têm dado identidade às comunidades humanas, em função da comunicação global está dando lugar ao surgimento de nova moralidade sob a influência da economia liberal, que incita a aproveitar a vida, a gastar, a ter prazer transpondo todos os limites e aceitando o excesso como natural. Essa é a tônica da contemporaneidade.
A busca da felicidade e do prazer, assegurada como nunca dantes na história da humanidade, pode estar levando ao adiamento, por tempo indefinido, das decisões morais, conforme afirma Costa (2005), e conduzindo à violência hajam vistos os elevados índices de criminalidade, assassinatos e suicídios tidos como problemas típicos da modernidade. Costa discorda que a perda de valores e o cultivo de personalidade hedonista/narcisista contumaz sejam traços determinantes da vida atual. Segundo ele: “É verdade que a maioria dos indivíduos urbanos elegeu o bem-estar e os prazeres físicos como a bússola moral da vida”, contudo, “Entre o ideal e a realidade, (…), existe uma distância considerável” (p.132). Acredita que na prática códigos religiosos ainda válidos e mesmo as ações de pessoas não religiosas se pautam em critérios de bem e mal.
Tais dúvidas e considerações sobre limites e regras de conduta não fariam sentido oitenta anos atrás. As condições sociais eram bem diferentes quando Freud descreveu um mal-estar na cultura proveniente do excesso de repressão. Nesse mal-estar o que operava era sempre o limite. O signo máximo do limite era a renúncia ao prazer dos prazeres, com a renúncia ao objeto do desejo no complexo de Édipo, evento central na organização do psiquismo. O desenvolvimento emocional no pensamento de Freud consiste em passar do prazer infantil e perverso voltado para o objeto parcial, um objeto sem subjetividade, ao prazer genital dirigido a uma pessoa. Essa passagem depende da interdição feita pelo pai.
Na atualidade vemos o pai como figura em crescente descrédito, possivelmente porque não limite mais o prazer, nem o próprio, nem o dos filhos. As famílias permanecem unidas pelas ligações amorosas, sendo expressão desse amor o asseguramento do direito uns aos outros a satisfazerem-se plenamente. Nesse contexto, não é de admirar que o limite assuma valência negativa, quando não persecutória. “Uma manifestação de comando”, afirma Melman (2003) “é vivida como intrusiva, como uma violência sentida de modo paranoico” (p.61).
Essa afirmação parece um exagero, mas não é. A família hodierna tem como ideal sustentar o mínimo possível de regras, enquanto se permitem limites cada vez mais elásticos em nome da gratificação de seus membros. Portanto, a ausência da função atribuída ao pai de regulação dos impulsos através do limite ao prazer é o grande vazio da atualidade.
Esse tipo de organização das relações familiares nos leva a interrogar sobre seus efeitos, em especial nos mais jovens, aqueles que estão em estreita dependência da ação do outro. André Green descreve uma situação em que as relações de amor entre pais e filhos, sem a contrapartida do limite, impede a formação de um vazio interno que ele denomina de estrutura enquadrante, onde pensamentos e sentimentos podem ser experimentados e conhecidos. Sua contribuição original refere-se aos efeitos da ausência do objeto na formação do psiquismo, o que ele entende como o trabalho do negativo.
O papel do objeto na constituição do sujeito em André Green: considerações sobre o sorriso do gato
Os processos de “psiquização” no humano, segundo Green (2008), acontecem de duas maneiras: pela adoção de uma via mais longa que aquela que conduz à somatização, via curta por excelência, e, por outro lado, por uma capacidade de mobilização que permite ao sujeito sair de suas fixações passadas através do investimento renovado de objetos externos.
A via longa da construção do psiquismo é relacionada à ação do objeto enquanto função materna, que pode ser representado mentalmente pela criança na sua ausência ou faltar e ser substituído. Os processos de constituição da subjetividade estão, portanto, essencialmente ligados à condição do objeto deixar-se apagar e a possibilidade do sujeito fazer o luto por este. Como se sabe, o luto trás o objeto perdido para uma condição que transforma o sujeito ao integrar-se ao “eu”, o que possibilita novos investimentos.
O trabalho do negativo, a ausência da mãe, tem três desdobramentos essenciais: 1. A constituição do próprio objeto em um lugar do espaço externo: “essa não é a minha mãe”; 2. A atenuação de sua presença onde se funda a representação; 3. O vazio internalizado na forma de uma estrutura, a estrutura enquadrante.
A noção de alucinação negativa é usada para explicar a formação da estrutura enquadrante. Acontece a perda da percepção do objeto materno como objeto que sustentava a criança e em seu lugar fica um traço mnêmico do contato corporal, de maneira que “É sobre esse fundo negativado que se inscreverão as futuras representações de objeto abrigadas pela estrutura enquadrante”; mais ou menos como o sorriso do gato em “Alice no País das Maravilhas”. O gato desaparece, mas fica seu sorriso pairando no ar. Na construção da capacidade de pensar deve existir uma “evolução feliz do objeto primário se apagando para se tornar estrutura enquadrante do Eu, portadora da alucinação negativa”. É isso que torna possível que o objeto esteja lá em tudo que ele não está e assim a relação feliz que a criança tinha com a mãe pode ser reencontrada nas coisas e pessoas do mundo.
Quando a mãe é excessivamente presente, não chegando a se fazer esquecer pela criança, desvia-se da sua função. Essa é a mãe que não estabelece limites à sua presença junto ao filho, não mede esforços para gratificá-lo e, portanto, não permite que a experiência de falta seja vivenciada. Na situação em que aconteça o desconhecimento do vazio estruturante associado à presença excessiva do objeto, o processo de constituição psíquica, “o poder ser negado para dentro” não se consuma e em função disso, a ausência do objeto faz surgir o vácuo, o nada, fonte de angústias inimagináveis.
Para fazer frente a essas angústias podem aparecer condutas aditivas como modos de negar a ausência e o temor de perder o objeto. Nas adições eletrônicas, em particular, o espaço mental é sustentado por permanente escala de onipotência contida na realidade virtual, seja na área sexual, na violência dos jogos eletrônicos ou em qualquer outro domínio da virtualidade, onde tudo ocorre e nada de fato ocorreu. Isso é bem diferente da atividade lúdica que conduz da fantasia à possibilidade de conhecer e tolerar a realidade não-eu, a realidade que escapa ao controle onipotente. Winnicott descobriu que o brincar acontece na ausência da mãe e representa a confiança por parte da criança no seu retorno, mas também indica a capacidade desta ficar só em segurança.
O objeto transicional e o temor da separação
“Expliquei à mãe que o menino estava lidando com um temor de separação, tentando negá-la através do uso de cordões, tal como através do uso do telefone se negaria a separação de um amigo” (Winnicott, 1975, p.33)
Winnicott foi o grande estudioso do brincar, de onde extraiu um conhecimento que tem se expandido com a clínica e as releituras de sua obra. Ele nos ajuda a entender, pela análise da primeira possessão da criança de um objeto não-eu, o objeto transicional – gênese do brincar e das atividades culturais, do fascínio pelas telas e pelo virtual.
O objeto transicional primitivo, tipicamente, um ursinho ou outro objeto com características semelhantes, simboliza o primeiro objeto, o seio, mas é mais importante por não ser o seio, ou seja, por suas características reais. É por esta ambiguidade, ser e não ser o seio, que a criança ingressa, pouco a pouco, na realidade e a aceita naquilo que frustra suas expectativas. O brincar é, assim, o espaço potencial do sonho, da criatividade, mas também do contato com a realidade, já que acontece no mundo através da manipulação e não na pura imaginação. Portanto, o objeto transicional permite a passagem da fantasia à realidade compartilhada.
Essa passagem, enquanto formação do psiquismo, implica em mudança de grandes dimensões, verdadeira transformação, ainda que não possa ser visualizada diretamente, pois “representa a transição do bebê de um estado em que está fundido com a mãe para um estado em que está em relação com ela como algo externo e separado” (Winnicott,1975, p.30). Assim, o objeto transicional viabiliza a passagem de uma relação de objeto sustentada predominantemente por aspectos narcísicos e, portanto, centrada no eu onipotente, guiada pelo desejo e por fantasias esquizo-paranoides, movida por identificações projetivas maciças, para uma relação onde o objeto, recortado da fusão primitiva, é reconhecido como outro. Isso remete o sujeito a um modo de relacionamento mais complexo com as pessoas, pois colorido por uma multiplicidade de sentimentos como exclusão, ciúme, inveja, rivalidade, amor, culpa etc.
Esse estado de maior complexidade só é mantido caso ele seja capaz de suportar mal-estar, falta, desconforto etc. decorrentes de sentimentos, pensamentos e conflitos dolorosos. Os fenômenos transicionais, ou seja, a zona de onipotência que a realidade virtual cria, seja no brincar tradicional, seja no brincar que estamos estudando aqui, o brincar com os artefatos eletrônicos, é um fenômeno interno, onde o eu narcísico se alimenta, para suportar a realidade não-eu, o objeto inexoravelmente separado do sujeito, a realidade fora do seu controle.
As pessoas que usam os fenômenos transicionais de forma compulsiva, como nos vícios eletrônicos, isolam-se do contato com outras, em verdadeiros refúgios psíquicos. Essa utilização nega a realidade que representa a noção de que o objeto é separado do sujeito e com isso evita dolorosos sentimentos de perda, mas também paralisa o desenvolvimento para a relação onde o objeto é experimentado como uma pessoa com vida própria e, em consequência, o sujeito fica também ele sem vida própria.
M. Khan, no prefácio da obra de Winnicott (2001), o cita dizendo que em tais pessoas “fantasiar continua sendo um fenômeno isolado que absorve energia, mas não contribui quer para o sonhar, quer para o viver” (p. 3). Esse fantasiar compulsivo é uma defesa maníaca que se faz acompanhar muitas vezes de agitação, agressividade, falta de atenção e cansaço, problemas que encontramos hoje com o rótulo de hiperatividade.
O controle onipotente da realidade interna, na civilização da imagem, se faz pelo controle dos espaços virtuais, tornado possível pelos modernos brinquedos eletrônicos. Aí, eu sou quem eu quiser: herói, super star, objeto do desejo. Ao manipular os jogos eletrônicos, por exemplo, o jovem, nas palavras de Barthes, passa de “larva” a “deus”, pois está “não mais sob a imagem”, à mercê dela como no cinema, “mas no meio dela e ao mesmo tempo separado dela pela distância ideal, necessária à criação, que já não é a do olhar, mas do braço” e dos dedos no apertar dos botões: (“Deus e os pintores sempre têm braços longos”) (p.13). O senso de controle onipotente da realidade, a exaltação do eu, os processos primários de pensamento baseados na realização do desejo remetam à noção psicanalítica de narcisismo, fundamental na compreensão da adição, assim como dos males associados à modernidade, os considerados não-neuróticos.
A adicção como estrutura e o narcisismo
O Dicionário Etimológico Nova Fronteira (2ª edição) afirma que até o século XV os termos “vício” e “viço” eram usados tanto para designar vigor, gozo, deleite, quanto defeito de caráter e pecado. A partir daí “viço” assumiu a primeira acepção e deu origem à palavra “viçoso” como sinônima de feliz, contente. “Vício” ficou, então, como sinônimo de tendência para o mal, depravação, hábito nocivo e incontrolável. Outro termo aparentado a este é “adicto”. Segundo Gurfinkel (1996), “adicto” é usado principalmente por autores de língua espanhola. Etimologicamente provem do latim (addictus) sendo assim chamado o homem que na antiga República Romana não dispunha de recursos para pagar uma dívida e se convertia em escravo. O termo adicto tem, portanto, essa conotação de tornar-se escravo do objeto; em outro sentido, fala-se também de afeiçoado, dedicado, apegado ou dependente. O substantivo “adicção” não existe a rigor na língua portuguesa, tratando-se de um neologismo.
É interessante notar essa duplicidade de sentido tanto na origem da palavra vício quanto no adjetivo adicto; ambos referem-se a algo que produz prazer, contentamento, mas também consistem em hábito nocivo, ligado à dependência extrema e a impulso incontrolável.
Em se tratando do uso de aparelhos eletrônicos, alvo do nosso trabalho, verifica-se em certas pessoas um emprego excessivo caracterizado como ação impulsiva e irrefreável Nesse sentido faria parte do conjunto de ações impulsivas e irrefreáveis existentes na conduta humana, sendo a isso atribuído o caráter de adicção. Esse termo é preferido ao vocábulo “vício” pelos autores que estudam tais fenômenos, como sustentados por uma estrutura de personalidade ou modelo de funcionamento mental que pode se dar com diferentes objetos e em diferentes contextos. Sua finalidade parece ser sempre bloquear o afeto depressivo, como sugere Liberman, e levar à descarga de impulsos, como menciona Joyce McDougall, ambos citados por Gurfinkel. Nessa perspectiva, tanto o álcool, o cigarro, a comida, o impulso para roubar ou, como estudou Betty Joseph, “a adicção à proximidade da morte” são manifestações de adicção.
Por que algumas pessoas se tornam adictas e outras não? Liberman, conforme Gurfinkel, estudando os tipos psicopatológicos pelo estilo de comunicação, inclui o adicto ao lado do perverso e do psicopata, identificando-os como “pessoas de ação” ou de caráter impulsivo. Segundo Liberman: “A adicção (…) teria como motivação última um repúdio a determinados aspectos da realidade interna e externa” (Gurfinkel, p.41).
Característica geral sempre presente no adicto é a incapacidade para pensar e a substituição do pensamento pela ação. A pessoa é capaz de perceber a tensão da necessidade, mas incapaz de codificá-la em termos verbais fica impossibilitada de satisfazê-la pelos meios apropriados. A falha simbólica resulta em um estado crônico de frustração, que gera tédio e irritação. A forma de sanar o tédio é através do ato ou acting out, quando se busca o alívio da tensão. É interessante notar que a ação eleita é a forma de comunicação do sujeito que não pode entrar em contato com sua subjetividade. A falha na comunicação intrapsíquica tem como corolário a hipertrofia do controle e manipulação da realidade, sobretudo, no que diz respeito à relação com o outro de quem o sujeito não se vê separado. Tudo isso acontece em meio à intensa ansiedade persecutória que reforça o controle sobre o objeto.
Assim, ressaltamos que nas adicções a consciência de ser um ente separado e individual produz sentimentos depressivos insuportáveis e aciona ansiedades de aniquilamento. A fuga desse estado para o objeto substitutivo, o objeto que não faz a transição, seja a droga, a internet, a comida etc., é marcada pelo grande prazer que a acompanha. Nesse ponto o narcisismo pode ser introduzido como um conceito que dá conta do afastamento da realidade e do funcionamento mental regido pelo princípio do prazer e a busca da descarga imediata das tensões. O narcisismo implica na idéia de que o eu é o alvo do investimento pulsional e encontra no investimento no objeto, e por extensão no mundo, uma contrapartida que enfraquece o investimento em si mesmo, o que faz com que os vínculos afetivos amorosos sejam sempre um risco.
A análise do humano, pela perspectiva do narcisismo, sinaliza a existência, segundo Gurfinkel, de uma “… instabilidade básica da posição do sujeito em relação ao objeto, ao outro, à realidade; realidade sempre parcialmente percebida, objeto sempre relativamente investido, outro sempre um pouco eu” (p.132). Em se tratando das personalidades fortemente narcísicas acontece de ser o objeto alvo da adicção o único verdadeiramente investido.
Considerações finais
Quanto ao uso excessivo dos aparelhos eletrônicos percebe-se que, aparentemente, existe uma profusão de ligações do sujeito a outros ou uma ligação estreita e intensa com uma só pessoa; entretanto, esse comportamento sustenta uma ilusão que consiste em uma solução de compromisso entre o desejo de ligar-se e o desejo de manter o outro a uma distancia que não comprometa o investimento narcísico com as vicissitudes do encontro direto. O investimento objetal, nessas circunstâncias, é intensamente buscado e intensamente evitado, pois implica em voltar-se para a realidade, realidade do outro, de sua existência independente do eu, o que o sujeito não logrou alcançar, em parte porque o objeto independente ameaça a realização do desejo e a consecução do prazer, sobretudo porque sua própria existência estaria em perigo de morte, se o vínculo se rompesse. Mediado pelos eletrônicos, entretanto, é possível algo do desejo de poder ou de ser amado realizar-se como em um sonho no qual o sujeito tem o controle.
Os artefatos eletrônicos, como objetos transicionais onipresentes em nossos dias, que recriam a realidade nos espaços virtuais, não fazem a transição para a realidade independente do sujeito e dificultam todos os processos de individuação que poderiam advir da elaboração de ansiedades de diversos, impedindo a criação do vazio interno, tela de onde poderia surgir o pensar transformador.
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